Olá pessoal!
Vocês conhecem a personagem Bree Van De Kamp ou Bree Hodge da série Desperate Housewives (Donas de Casa Desesperadas)?
Essa série é bem longa, tem 8 temporadas, e mostra muito da “vida como ela é”, com suas questões diárias, conflitos entre os personagens, amizades, inimizades, questões pessoais, coletivas, enfim, engloba várias vivências que todos nós também vivemos, em maior ou menor grau.
Claro, há também as questões sórdidas, criminosas, ocultas, os escândalos, tabus, instâncias sombrias. E a Bree é uma personagem que mostra claramente esse jogo de luz e sombras, a dinâmica da consciência versus os impulsos inconscientes.
Vou falar um pouco sobre essa personagem no início da série, enquanto ainda era esposa de Rex Van De Kamp.
Bree é uma das quatro personagens principais da série. Ela é conhecida por ser a pessoa mais perfeccionista e ética da vizinhança, sendo vista pela comunidade como a mãe e a “mulher perfeita”, de uma perspectiva de modelo de mulher tradicional, conservadora e exemplo de dona de casa (uma expressão do feminino nos Estados Unidos da década de 50). Ela possui várias habilidades, cozinha com esmero, cuida de seu jardim, de sua casa, costura etc. Tudo que faz, faz com muita perfeição.
Nos primeiros episódios ela demonstra de cara sua ênfase na Persona. Persona seria uma máscara social, aquela parte da personalidade que se adapta à sociedade. É uma parte muito importante para se viver, para se comunicar adequadamente, para saber diferenciar os ambientes, as situações. O perigo está em quando a pessoa se identifica em excesso com a persona, provocando um consequente empobrecimento em muitos outros níveis na vida. A Persona dela foi embasada nessa imagem coletiva: modelo de mulher da década dos anos 50 nos Estados Unidos da América.
Podemos ver como Bree é uma pessoa que construiu uma persona muito evidente. Tudo o que ela faz é mediado pela aparência, por como ela demonstra do “jeito certo” as coisas. Também fica claro como isso empobrece suas relações, em especial as relações mais íntimas com seus filhos e marido, pois inicialmente, ela não se abre emocionalmente à eles e nem permite que eles possam se expressar livremente.
Em seu casamento com Rex Van De Camp, ela tem dois filhos e eles moram numa casa impecável do subúrbio, na famosa Rua Wisteria Lane. A primeira impressão ao ver sua família nesse primeiro casamento é de que seriam uma “família perfeita”. Bree cuida meticulosamente da casa, com uma limpeza e organização impressionantes. Aparentemente também cuida de seu marido e filhos, ensinando boas maneiras, cuidando da rotina deles e de suas necessidades objetivas.
Mas logo percebe-se que há “alguma coisa estranha”. Sua família não tem a mesma visão que a comunidade tem por ela. Os filhos se mostram revoltados em alguns momentos, seu marido a trata com desdém e pouco caso. São diversas as cenas em que aparece como ela não sabe lidar com as emoções. Há muitas cenas em que a personagem mostra como se irrita com diversas situações em que ela perde o controle e que as coisas não saem como imaginou. É comum ela reagir com um comportamento controlador e punitivo. Frequentemente ela se chateia, mas procura nunca demonstrar externamente o que está sentindo.
Essas características a fazem ter habilidades muito importantes em momentos de estresse e pressão, pois em momentos como esses, ela demonstra grande estabilidade emocional e isso a ajuda a ter decisões e tomar atitudes. Porém, é visível a necessidade de controle que ela tem com tudo. Quando ela cozinha, ela praticamente impõe à família que gostem da comida e valorizem o esforço que ela faz ao cozinhar pratos requintadíssimos, enquanto muitas vezes eles só queriam comer algo despreocupados, sem tanta rigidez de sua parte. Muitas vezes seu marido, ao invés de apaziguar ou mediar os conflitos, é irônico e imaturo, apresentando uma postura narcísica, com pouca ou nenhuma empatia.
Ela fica aprisionada no seu mundo em busca de perfeição, mostrando distanciamento emocional com traços marcantes de neurose e transtorno obsessivo compulsivo. Escondendo grandes vulnerabilidades emocionais por trás disso tudo.
Para Jung, na neurose obsessiva em que vemos a pessoa praticar rituais e atitudes programadas, que lembram uma cerimônia, isso tudo representa não só um problema moral, mas na verdade são atitudes que escondem conteúdos internos cheios de maldade, criminalidade e intenções inescrupulosas. É como se o indivíduo relutasse com esse outro lado e procurasse resistir a ele com desespero através dessas atitudes cerimoniais. Ele diz ainda que a personalidade desse indivíduo pode se demonstrar externamente de maneira suave e organizada.
É como se a neurose obsessiva viesse para esconder, disfarçar todo um “mal” dentro do indivíduo, como se ele tentasse resistir à uma parte da personalidade que é bastante sombria. As atitudes cerimoniais e “corretas” seriam um contrapeso, uma compensação com relação ao mal que ameaça internamente dentro do indivíduo.
É uma realidade esse funcionamento compensatório, de consciente e inconsciente. O que a consciência mostra por um lado é complementar ao que as forças do inconsciente desejam. Nem sempre opostas, mas complementares.
Essa visão nos leva ao sentido da Totalidade do ser. Para Jung a nossa totalidade abarca todas as nossas esferas, consciente e inconsciente. Às partes conscientes temos um acesso, mas a do inconsciente não sabemos. No entanto, essas partes se expressam através dos sintomas, das ações, opiniões, dos afetos, fantasias e através dos sonhos. A observação desses materiais nos auxiliam, podemos tirar conclusões sobre a constituição e o estado momentâneos desse processo inconsciente do indivíduo e do desenvolvimento dele. E sempre teremos de tomar cuidado com conclusões, levantando hipóteses e observando-as.
Observando Bree, podemos pensar que é como se ela procurasse esconder, reprimir seu lado sombrio (imaturo, controlador, maldoso, autoritário, etc) por trás de sua persona que se apresenta socialmente como encantadora, responsável, ética, habilidosa, etc.
Podemos considerar isso como uma compensação. A totalidade dela, ou Self, seria a união de todos esses lados, mas para ser uma personalidade amadurecida e desenvolvida (individuação), o lado sombrio deveria ter sido melhor conscientizado para que houvesse uma compreensão, elaboração e integração desses aspectos de uma maneira mais harmoniosa.
E embora ela tenha esse lado humano, engraçado e cativante em muitos momentos, percebemos o quanto essas questões ficaram na sombra, sendo negadas por ela.
Para ilustrar, vou citar o episódio em que ela está com Rex no quarto de hospital, em que ele está internado. Ele foi internado pois “acidentalmente” Bree coloca cebolas no prato dele, sendo que ele é alérgico à cebolas. Então ele é internado por causa da reação alérgica. Já no quarto do hospital eles começam um diálogo. Rex diz à Bree que não acredita que ela tentou matá-lo. Bree responde que se sente mal a respeito disso, que se distraiu na hora por causa de uma mulher que apareceu e que errou por causa disso. Ele a questiona dizendo “desde quando você comete erros?”, ironicamente. E assim ele começa a dizer a ela tudo o que o incomoda, que está cansado dela estar terrivelmente tão perfeita o tempo todo. Ele diz que não aguenta mais a maneira bizarra do cabelo dela nem se mexer, que está cansado dela arrumar a cama de manhã mesmo antes de ir ao banheiro. Que ela se tornou essa mulher dona de casa, de plástico com suas pérolas. E a questiona perguntando onde está a mulher que ele se apaixonou? Aquela que queimava a torrada e bebia leite fora da caixa, aquela que ria. Ele diz que precisa daquela mulher e não dessa coisa fria e perfeita em que ela se transformou.
Esse diálogo poderia ter sido uma oportunidade para uma conversa aberta, em que haveria espaço para a demonstração dos sentimentos, espaço para inclusive colocar para fora tudo o que não estava bom, um espaço saudável para a “sombra” através do diálogo. Porém Bree simplesmente não responde nada e sai do quarto dizendo que iria colocar água na planta que estava lá. E somente ao entrar no banheiro e fechar a porta é que liga a torneira e se permite chorar ao mesmo tempo. Mas ao sair do banheiro, investe novamente em sua persona “perfeita” e sai com um belo sorriso, reforçando novamente sua neurose.
É interessante ver como Bree vai se desenvolvendo durante a série. Para aqueles que já assistiram ou forem assistir, vocês podem observar como ela vai dando mais espaço para outras partes de sua personalidade no desenrolar do tempo e dos acontecimentos.
Bem, espero que vocês tenham gostado dessa análise! Peço que me visitem nas redes sociais para acompanhar meu trabalho e inclusive me dar um retorno quanto à essa leitura!
Até a próxima!
Bibliografia:
Jung, Carl Gustav, (2008) O Eu e o inconsciente, Petrópolis, Vozes [Obras completas, vol. VII/2]
Texto para o Blog Psicologia em Séries, 7 ed.